Essa é minha
família no verão de 1883. O último verão de sol realmente forte em Paris. Minha tia Armelle, minha avó Maxime, meu pai Siegfried, minha mãe Anabelle e a minha outra tia, a Fleur. Sem contar com os meus irmãos e irmãs. Eu
sou o terceiro perto de meu pai, extremamente satisfeito de ocupar o lugar
desejado entre eles.
As raízes de minha família estiveram
envolvidas em uma história realmente incomum. Minha mãe era francesa, filha de
um comerciante viúvo que vivia na cidade de Sedan. Sendo que 1870 foi o último
ano da família Grosrenaud na cidade. Minha mãe estava próxima dos seus 14 anos
e suas irmãs nem haviam entrado na puberdade, enquanto seu irmão mais velho estava
saindo dela. A França especificamente nesse ano vivia uma guerra com o Reino da
Prússia. Minha mãe dizia que alguém importante para o exército francês estava preso
em Metz, cidade vizinha, e que havia uma extrema preocupação de que os inimigos
de nosso país chegassem a nossa cidade. Segundo minha mãe, seu pai pediu para
que todas elas fossem com seu irmão para o mais sul que pudessem caso o
exercito francês tanto quanto o exercito Prussiano chegassem à cidade.
Eles chegaram em 31 de agosto, para
mim, uma data memorável. Dia que o rumo de minha família mudou completamente.
Meu avô teria pedido que corrêssemos para o sul junto com uma carga enviada
para Paris a onde um amigo comerciante dele os ajudaria. Chegando na capital,
meu tio estaria começando a ficar doente. Minha mãe dizia que as refeições eram
nos primeiros meses, sem exceção, sopa de cebola, já que crescia em todo lugar
da Europa (o que culminou em um severo ódio a cebolas posteriormente). O amigo
comerciante ajudou oferecendo todo apoio possível principalmente da notícia da
morte de meu avô que se envolveu na guerra. Meu tio faleceu poucas semanas
depois sem cumprir a promessa feita para seu pai de casar as irmãs. Mamãe ficou
desesperada e teve muitas responsabilidades naquele tempo para uma jovem garota.
O amigo comerciante ajudou ainda por mais anos. Todas as três trabalhavam em
troca de estadia, restos de comida e o uso da horta. Talvez foi aí que surgiu
os dotes culinários que tanto apreciei de minha mãe. Com os restos do corte de
carnes ela fazia o Boef Bourquignon, cozinhando no vinho (assim deixando a
carne macia) e adicionando cebolas, cogumelos... Pierre, o amigo comerciante,
gostava muito da comida preparada por minha mãe Anabelle, sendo que até os
ensinava para sua esposa e deixava que ela usasse seus vinhos.
Camille
Saint-Saens – Symphony Nº 2 In a Mirror Op. 55 (1878) https://www.youtube.com/watch?v=gha94787ZyQ
Mamãe foi
convidada por um amigo de Pierre para trabalhar na embaixada alemã como
cozinheira depois de um jantar feito por ela e que ele pôde ter o prazer de experimentar.
Lá ela conheceu meu pai, Siegfried Ritter, filho de um
importante Sigmund Ritter tenente-coronel alemão que fazia papel diplomático das forças
armadas na França. A Europa vivia em um forte movimento nacionalista e
xenofóbico, principalmente por parte dos franceses contra os alemães. Porém,
contra a correnteza, meu pai se mostrou muito interessado pela cozinheira que
ora fazia trabalhos de limpeza. Algo inimaginável em uma época de casamentos
arranjados. Como um filho de tenente-coronel alemão poderia se casar com uma
francesa pobre sem família? Meu pai mesmo assim começou um romance escondido. Ele
se sentiu bastante comovido com a história de minha mãe contada em seu
corriqueiro ponto de encontro: as escadas da recém-construída Ópera Garnier, de
nova arquitetura eclética e que marcou o começo do romance dos dois. Papai
resolveu conversar com seu pai e tentar convencê-lo de sua vontade, obviamente ele
quis manda-lo de volta a Alemanha imediatamente e demitir a jovem empregada. Já
esperando essa reação os dois deixam a rotina da vida e fogem, continuando na França mas sem levantar pistas. Para todos os efeitos eram apenas mais dois fugindo das mazelas da guerra. Assim eles recomeçam a vida e se
casam poucos anos depois em 1874. O filho de tenente se torna um fazendeiro e a
empregada uma dona de casa que por vezes vendia tortas de Tarte Tatin, feitas com frutas caramelizadas, colocadas
debaixo de uma massa e depois assadas.
Em 1875, é quando
minha mãe engravida de seu primeiro filho, eu. Maxime, que considero como minha
avó, era uma viuva de um homem talvez um pouco influente, amante da arte e
muito moderna para sua epóca que vivia em condições bem simples. Ela ajudou a
fazer a cidade acreditar no boato de que eramos a todos franceses fugidos, evitando
possível preconceito ao casal de origens opostas com os raizes na Prússia. Mas não conseguiu evitar os
olhares tortos as tias solteiras, ainda muito novas, que vovó tratou de dizer
que eram as sobrinhas alemãs que haviam perdido o pai. Minha irmã, Anna, nasce
em 1880, depois Nicole em 1883. Em 1894 meu pai descobre que meu avô, seu pai, esteve
envolvido no Caso Dreyfus sobre a possível traíção de um capitão francês a
favor da Alemanha. O caso foi sustentado novamente pelos xenofobicos e
nacionalistas. Meu pai sempre foi muito nacionalista, mas não xenofobico e
segundo minha mãe ele se comportou estranhamente ao saber notícias de seu pai,
já que não podia mais vê-lo.
Luiz Amato e Achille Picchi, piano – Debussy https://www.youtube.com/watch?v=5AM-lN6a1dk
Em 1895 nasce meu irmão Friedrich, que foi batizado com esse nome devido o afetio que meu pai tinha por Guilherme I da Prússia, nascido Friedrich, Imperador Alemão. Augusta nasceu em 1888 e seu nome também é uma homenagem a Imperatriz da Alemanha.
Finalmente chegamos na epóca
retratada na minha foto. A avó Maxime sempre frequentava nossa casa e nos ensinou a ler em francês e alemão. Falavamos
francês em casa, principalmente por causa de mamãe e de nossas tias. Ela nunca
se importou com ao estranho amor de meu pai ao que se tornou a Alemanha unificada. Ela dizia que a
saudade dele ao seu país o tornou fanático, principalmente quando ele passou a
recusar-se a falar francês.
Viviamos bem e preocupações com
conflitos e guerras não existiam, pelo menos aos meus olhos, naquela época, mas meu pai compreendia as mudanças políticas que decorriam na Europa. As vezes penso que ele sabia no que estas alterações significariam no futuro.
Em 1893 conheço Marie, a linda jovem com quem me casei e tive meus filhos. A quem também dedicarei uma nota exclusiva, além de todo o meu amor e fidelidade.
Em 1900 fomos a Davos na Suiça, assistir um campeonato mundial de patinação no gelo, ideia de Vovó Maxime que conhecia alguns organizadores e que nos colocou em lugar bom o bastante para assistir. A Áustria ganhou. Logo antes a França acabara de viver a euforia de receber os jogos olímpicos de verão.
Em 1893 conheço Marie, a linda jovem com quem me casei e tive meus filhos. A quem também dedicarei uma nota exclusiva, além de todo o meu amor e fidelidade.
Em 1900 fomos a Davos na Suiça, assistir um campeonato mundial de patinação no gelo, ideia de Vovó Maxime que conhecia alguns organizadores e que nos colocou em lugar bom o bastante para assistir. A Áustria ganhou. Logo antes a França acabara de viver a euforia de receber os jogos olímpicos de verão.
Tive uma juventude feliz. Ajudava
meu pai no trabalho de nossa fazenda, ajudava na nossa plantação, alimentava a
única vaca que tínhamos, ordenhava-a. No meu quarto admirava meus brinquedos de outrora, os meus peões e
soldadinhos de chumbo presenteados no Natal por vovó Maxime. Mamãe contava histórias amedrontadoras como a
dos fantasmas de Versalhes que teria sido um acidente no tempo em que duas
turistas teriam se perdido em Versalhes e parado em uma casa com pessoas que
pareciam estar em outra época, as turistas teriam até avistado Maria Antonieta.
Para nossa tristeza Vovó morreu um ano depois, em 1901 dormindo. Sinto saudades como ela fosse
minha mãe.
Durante todos esses
anos o mundo vivia a euforia da chamada Belle Epóque, um tempo de
progresso econômico e tecnológico. Via nos olhos de meu pai seu
descontentamento quando chamavam a França e a Grã-Bretanha de “os mais fortes
da Europa”. Mas nações como Itália, Alemanha e Japão, promoveram a modernização
de suas economias. Com isso, a concorrência pelos territórios imperialistas
acabava se acirrando a cada dia. Orientados pela lógica do lucro capitalista,
as potências industriais disputavam cada palmo das matérias-primas e dos
mercados consumidores mundiais.
Uma das mais fortes
lembranças que tenho de meu pai era vê-lo lendo, quase sempre um jornal e
sempre resmungando sobre a Alemanha. Meu pai era nacionalista e acredito que
toda Europa também. A ideologia nacionalista alimentava um sentimento utópico
de superioridade que abalava o bom entendimento entre as nações. Outra
importante experiência ligada a esse clima de rivalidade pôde ser observada com
o desenvolvimento da chamada “política de alianças”, que obviamente só entendi
melhor na minha universidade. Papai sempre resmungava que “o
barril de pólvora explodirá”. Até mesmo no dia de meu noivado o peguei
sussurrando essas palavras. Não sei se ele estava começando a ficar louco, mas
parecia cada vez mais distante. Ele não gostava de quando eu dizia que queria
ir para Paris estudar. Achava bobagem. Atitude estranha para um homem que
estudou e apenas optou pela vida simples por causa de amor. A Europa já estava a poucos passos da Grande Guerra.
Em 28 de julho de
1914 tudo mudou. O verão ficou frio. Estava andando na praça Place du Marché em uma fresca noite com minha esposa Marie quando nos
deparamos com a notícia da guerra. Depois da Austrio-Hungria ter declarado
guerra a Servia e a Rússia, acarretou-se todos os outras decisões militares,
inclusive da massiva invasão alemã na França. Meu pai não pensou duas vezes e
quis partir para a Alemanha e defender seu país. Siegfried gritou as quatro parede
de nossa sala rústica “Salve a Alemanha e Guilherme II”. Mamãe nem se importava
que a França seria invadida, mas o que doeu nela foi a do homem já velho demais
para uma guerra decidiu abraçá-la e largar sua família. Ao saber que papai se
preparava para partir mamãe não quis conversar, foi para seu quarto, fechou a
porta e ficou lá durante um dia. Não ouvi choro, não ouvi palavras. Ninguém
ousou entrar, nem papai. Questionei o porquê aos prantos e ele respondeu que
“você e seus irmãos já estão maduros o bastante para aguentar a partida de seu
pai”. Tia Fleur tentou me controlar enquanto o xingava e gritava que nunca o
perdoaria. Ela me confortou com uma frase no ouvido: “o deixe ir, é melhor que
ele vá e viva seu último momento na pátria que ele abriu mão por causa de nós”.
Minha mãe perdeu mais uma vez o homem mais importante de sua vida. Mas decidi
naquele momento ocupar esse cargo.
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